A Peça

               Uma das primeiras tragédias escritas por Shakespeare, “A Tragédia do Rei Ricardo III” é também uma das mais famosas, não só pela sua emblemática personagem principal, o disforme e maquiavélico duque de Gloucester, como também pela controvérsia que gerou ao longo dos séculos, desde a sua escrita em 1591. Sabe-se hoje, à luz da História, que o enredo dos acontecimentos não é exacto se comparado aos factos reais. Na verdade, são várias as inexactidões (propositadas, dizem os especialistas) em que Shakespeare incorre na sua elaboração: Ricardo não foi, nem de longe nem de perto, o tirano sanguinário que a peça descreve, não cometeu quase nenhum dos assassinatos que se lhe atribuiu, não era tão fisicamente deficiente como ele próprio se descreve (“Deformado, inacabado, enviado antes do meu tempo/ P'ra este mundo que respira ainda mal feito p'la metade/E assim tão lamentável e horrendo/ Que até os cães me ladram quando manco ao passar por eles”). Não obstante, a peça permanece como uma das obras mais geniais do dramaturgo, pois ela encerra em si um dos contos mais tenebrosamente sedutores que alguma vez se ergueram em cena.
                O pano de fundo é a Guerra das Rosas, o conflito que opôs as casas nobres de Iorque e Lencastre numa luta sangrenta pela conquista do trono de Inglaterra. Findo o conflito, ergue-se das cinzas da guerra a Real Casa de Iorque, liderada pelo triunvirato de irmãos: Eduardo, Rei de Inglaterra; Jorge, Duque de Clarence; Ricardo, Duque de Gloucester. O que é manifestamente insuficiente para o ambicioso Ricardo. Almejando reinar, o infame duque começa a tecer uma teia de perigosos jogos de influência por forma a minar os interesses dos seus pares. Opõe-se abertamente à Rainha Isabel e à sua família, recruta como seu aliado o influente Duque de Buckingham, conquista como sua amada Dona Ana, viúva do antigo Príncipe de Gales, que havia assassinado. A implacabilidade do seu coração só é igualada pela subtileza da sua acção. Assassina os seus irmãos, os seus sobrinhos, toda a alta nobreza e permanece, aos olhos da maioria, livre de qualquer suspeita, conquistando a coroa por exclusão de partes: quando Ricardo finalmente se senta no trono real, toda a linhagem de sucessão tinha sido por ele destroçada.
                Mas, se até este ponto, testemunhámos, enquanto público, a ascensão ao céu de um verdadeiro demónio, iremos testemunhar, até ao desenlace da peça, a sua estrondosa queda no mais abismal inferno. Ricardo isolou-se de tudo e de todos, é desprezado por toda a nobreza, os seus próprios aliados desertam ou são sumariamente executados por imaginadas traições. Ricardo vive sobressaltado, desconfiando das sombras. Ergue-se, em França, o Conde de Richmond, que irá atravessar os mares para disputar, pela força das armas, o direito real. O outrora imponente duque é assombrado pelos fantasmas das suas vítimas, pelas personificações da sua culpa imensa, pela sua psique fragmentada (“A minha consciência tem um milhão de diferentes vozes/ E cada voz traz consigo um horrendo conto/ E cada conto me confirma como um vilão.”) Nos campos de Bosworth, o exército de Ricardo é rimbombantemente destruído pelo de Richmond. “Sangrento és, sangrento será o teu fim”, havia vaticinado a mãe de Ricardo. E assim sucede.
                É esta a vertiginosa viagem proposta por Shakespeare e é este “horrendo conto” que nos propomos erguer, não como uma exploração sádica e voyeurista da imaginada biografia de um tirano, mas como uma séria reflexão acerca da natureza dessa mesma tirania, da sua composição, das suas consequências, das suas vítimas. Não há aqui inocentes, tão pouco, nem sequer o público, que jogará os seus próprios afectos ao presenciar Ricardo lutar pelos seus.