O Espectáculo

              Este espectáculo insere-se no género “site specific”, ou seja, é um espectáculo cujo processo de construção tem em conta, como directriz primeira da encenação, as particularidades do espaço de apresentação, tentando capitalizar as suas especificidades arquitectónicas e estéticas e construindo um objecto teatral indissociável do espaço que ocupa. Assim sendo, e tendo em conta a soturnidade da peça escolhida este ano, pareceu-nos desejável encontrar um espaço que possibilitasse uma certa grandeza cénica, um conflito entre luz e sombra, um espaço que se desse bem à evocação fantasmagórica da voz e do corpo do actor. De entre das limitadas possibilidades que tínhamos, a Garagem Linhares, na Praça do Almada, surgia-nos sempre como a mais desejável, pois reúne todas estas características, possuindo, para além disso, uma localização central invejável.
                Estando este espaço assegurado, precisávamos de começar a elaborar um pensamento cénico sobre a adaptação da construção dos actores ao espaço real da garagem. Começámos por imaginar qual seria a relação privilegiada que Ricardo manteria com o público (visto que, por várias vezes, ele o interpela directamente, como se de um confidente se tratasse, transmitindo ao espectador, de antemão, as suas maquinações, projecções e anseios). Imaginámos que Ricardo poderia, ele mesmo, guiar o público pelo espaço da Garagem, assumindo o papel de “apresentador” dos acontecimentos e das cenas. Assim sendo, desenhámos umas bancadas móveis, onde o público se sentaria, que pudessem ser transportadas por todo o espaço, dando-nos a possibilidade de construir cenas em praticamente qualquer um dos recantos da garagem, podendo nós explorar o espaço na sua totalidade.
                Depois, passámos à exploração psicológica das personagens que compõem o quadro gótico e sombrio que queríamos apresentar. A mente de Ricardo, máquina principal que impele o espectáculo rumo ao seu desfecho, surgiu-nos como uma complexidade em si própria altamente metaforizável e, assim, eminentemente representável. Essa metáfora materializa-se através do coro de vozes que, em conjunto, dá matéria viva ao pensamento de Ricardo.
                Esta possibilidade resulta também do estudo estético que se fez sobre as personagens e cenas. Tentámos, o mais possível, afastarmo-nos do realismo cénico, substituindo-o por uma relação simbólica entre as personagens e as suas acções. Elas não são reais. Não queremos, então, que o pareçam. Podemos chamar-lhes fantasmas, vestígios, restos de pessoas que assombram a cena. Nas palavras da Rainha Margarida, rainha deposta, ostracizada, exilada, exemplo primeiro dessa semi-existência em forma de sombra: “Assim girou a roda da justiça/ E fez de ti não mais do que uma presa do tempo/ Não tendo nada além da memória do que foste/ Para mais te torturar, sendo agora o que és”. Presas do tempo, memórias de tempos idos, torturadas, assim são as personagens que habitam a garagem, artificialmente preservadas para prazer do público.
                Como pilar último do nosso pensamento dramatúrgico, surge o tratamento especial que daremos à luz. De modo a, com sucesso, poder alcançar os nossos objectivos, necessitávamos de um ambiente que jogasse a luz e a sombra de forma maniqueísta, confrontando os opostos por forma a congregá-los em cena. Assim sendo, resolvemos aproveitar a estrutura da garagem e iluminá-la “de baixo para cima”, aumentando-lhe assim a soturnidade e imponência e abandonando, por consequência, as personagens aos seus percursos de sombra através do inferno dantesco criado por Ricardo.